Manoel de Barros – o esticador de horizontes…

Carregar água na peneira talvez seja a função mais importante na vida do escritor Manoel de Barros. Sua poesia carrega entre as alças das letras um apego ao nada. Como ele mesmo conta em um dos poemas de seu livro das "Ignorãças", publicado em 1993, "Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa em cima, serve para poesia…" E é colecionando absurdos e vazios que ele juntou material para a construção de seus 22 livros e é considerado hoje um dos poetas brasileiros mais importantes da contemporaneidade.

Com 92 anos vividos entre sua cidade natal Cuiabá e os passeios nas cidades grandes – quando encontrou Stella o grande amor de sua vida, no Rio de Janeiro – Manoel se diverte em escutar a cor dos passarinhos, fazer delirar verbos e esticar horizontes, assim como um de seus personagens, o Bernardo.

Com uma linguagem própria e a capacidade de desenhar o mundo com palavras, ele faz os meninos encherem os bolsos de passarinhos e as meninas voarem como pássaros em seus brinquedos feitos com latas de goiabada. É nesse universo dos sonhos que Manoel consegue encantar crianças e quem se encorajar para uma leitura sobre os homens com uma ótica leve.

Assim é o livro "Exercício de Ser Criança", editado em 1999 pela Salamandra editora. Dividido em dois longos poemas/contos, a obra é delicada pela própria existência. A começar pela ilustração feita pelas mãos de oito bordadeiras. Cada parte da história traz imagens coloridas e belas que acompanham o delírio do verbo do poeta. A primeira parte é a do "Menino que carregava água na peneira". Talvez seja um retrato do próprio Manoel quando a mãe descobre que o filho gostava de escrever.
 
Como ele mesmo disse em entrevista recente, "eu nasci com essa obsessão de produzir poesia"…ou em sua linguagem menos direta: "A mãe disse que escrever era o mesmo que carregar água na peneira/ Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos/ A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água/ O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos/ Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos/ A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos…"

Infinita é a poesia de Manoel e suas loucuras em tentar escrever sobre o abismo. "Sou um apanhador de desperdícios". Manoel costuma contar que passou a vida inteira brincando. "Todo mundo ri da minha poesia…". O riso talvez seja o erguer do espelho para mostrar o ridículo e a complexidade que é ser humano.
 
E Manoel consegue estender o nosso riso sobre um abismo puro. "O que faço é a humanização de todas as coisas", disse certa vez. O poeta humaniza não só as coisas, como a natureza e coloca a manhã de pernas abertas para o sol, utilizando a metáfora como um trunfo para a suas coisificações do homem, como acontece no livro "O Retrato do Artista quando Coisa", ele lembra a obra de James Joyce "O Retrato do Artista quando Jovem" e metaforiza os personagens, coisificando-os. Para ele, a poesia renova o ser… Entra em contato com o primitivo e desnuda o homem e faz do caramujo uma solidão que anda pela parede.

Manoel é assim, interrompe o vôo de um pássaro colocando um ponto final nele, brinca e se lambuza com o doce das palavras, retirando delas o que existe de mais sublime. "Achava que os passarinhos são pessoas mais importantes do que aviões. Porque os passarinhos.Vêm dos inícios do mundo. E os aviões são acessórios

Esse é o discurso da delicadeza e da simplicidade tão ausente na (des)poesia de hoje, dos dias e noites de hoje, esse cruel e desmundo mundo.

"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá, Onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos
O verbo tem que pegar delírio" (Livro das Ignorãças)

Auto retrato: por Manoel de Barros

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que
fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

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